04 março 2006

Uma página em branco e do avesso


Uma página em branco, do avesso, de baixo para cima, de trás para frente, indiferente. Começo do início e fim terminal. O esboço em carvão de um corpo de mulher, deitada em meio a lençóis alvos, escondida na brancura do papel, fugindo em linhas negras, esfumaçadas e perigosas, esboçada. Vestígios de um sonho dobrado que a corta ao meio sem piedade. Rindo à toa, o sonho afiado se perde nos descaminhos da imagem refletida pela indubitável transparência. O sonho é uma navalha a decapitar o real. Uma vez de um lado não se pode escolher o outro, quando no outro, o outro, será apenas (des)memória. A cor amarela é a cor do passado, registra o que já não é. A mulher, outra em outra, e o papel, suporte desleal, ainda estão ali, tão unidos e tão (des)iguais. O papel contém duas verdades em duas mentiras, ou vice-versa. O destino é sempre um jogo de sorte, talvez, de azar. A brancura do papel novo encerra em si o desespero futuro: a amarelidão do papel velho, guardado, esquecido. O novo é que está no velho e a recíproca é verdadeira. O desenhista já nem desenha, sequer existe. Só, a mulher não envelheceu. Dorian Gray a reclamar a juventude em espasmos de vida imitando a arte. A mulher é a obra de arte; o papel, o suporte; o artista, o criador. Óbvio, assim parece; erudição, se refletido.Pense no espasmo, no criador.Mistério a penetrar todas as vidas, todas. Dos três, apenas o artista não morreu, perpetuado em sua mulher no papel amarelado, abandonada no fundo de um jacarandá a desdenhar, inconscientemente, do interesse alheio. Eu, jamais envelhecerei! Será que ela pensa? Um depósito empoeirado e um tesouro assinado por mãos artífices, criadoras da mais bela das obras. À noite, quem sabe, ela ou dance ou se debruce na janela a espiar o mundo lá fora. Romance! O papel e sua ‘double face’: vida e morte. A mulher no verso, ou no anverso?, gerada em fluxos de pensamentos delicados, espontâneos, sábios, filosóficos e criativos, guiando mãos ultra-sensíveis. Uma valsa vienense e um sonho partido ao meio como o centro dos corpos pelos dois gumes da vida. O fio da navalha e a dor do dedo cortado na borda do papel. De um lado, a marca, do outro, nada. Transparência afetiva que a todos revela: lembrança. À meia-noite, desfaz-se o encanto e à fantasia a realidade.

Jorge Amaral

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