19 julho 2005

Os Homens Planeiam, Deus Ri

Então frutalhada? Desmoralizados?
Vinha eu no outro dia, rua abaixo, com o saco do pão na mão, quando vi o Miguelito. O puto do 3º Dto que mora no meu prédio como lhe chamam os vizinhos. Sai de casa de manhã cedo e vai ter com a mãe à praça, onde dá uma ajuda à mãe a despachar o pouco peixe que ainda se compra por aquelas bandas. Os olhos ramelosos, os calções sujos, aqule olhar triste e um nariz sempre ranhoso lá compadecem um ou outro e lá fazem entrar mais uns euritos de carapaus e peixe espada. Sim, porque a vida está pela hora da morte, vão dizendo aqueles que, em ritmo de passeio por entre as frutas, hortaliças e roupa contrafeita, passeiam pelo mercado dos Olivais.
Se o negócio correr bem pode calhar qualquer coisa ao Miguel. Um bolito sabe mesmo bem! Ele adora as bolas de berlim da padeira. Num expositor onde há meia dúzia de anos estavam dezenas de bolos, dizimados por todos os putos que iam para a escola primária e que tinham uma moedita no bolso, estão hoje meia dúzia. Ninguém ali passa, os miúdos tomam o pequeno almoço em casa, já não há a moedinha... Os que podem comprar, preferem qualquer coisa que venha com brinde. Um boneco, um autocolante ou outra coisa qualquer que normalmente, depois de um dia de escola não chega a entrar em casa.
É quase uma da tarde. Enquanto a mãe arruma a bancada e varre o pouco gelo que ainda resta, o Miguel tenta escapulir-se. Afinal está de férias!
Corre à frente da mãe para casa, come uma sandes com manteiga e volta a sair. Todos os outros miúdos do 454 estão já na rua à sua espera. Só falta ele. Mas não podem ir ainda para o grande jogo. É ele quem tem a bola! Uma reluzente bola prateada da Nike, oferecida por um tio abastado que saiu a tempo daquele bairro. Costuma o Miguel dizer que um dia vai ser como o tio. Vai ter um carro e uma casa com quintal para poder ter um cão.
Enquanto correm, apressados para o improvisado campo, ouvem ainda a mãe de um deles a dizer que o quer em casa antes de jantar. Mas acho que nem eles sabem quem era. Voltam quando acabar o jogo. Afinal estes jogos são muito importantes. Estão a fazer um campeonato com os putos da rua de cima. E ninguém quer perder!
Quando Miguel regressa a casa ouve o raspanete da mãe. Voltou a chegar a más horas e todo sujo. Os calções cheios de terra e a t-shirt meio rasgada. Mas ganhou o jogo! Come à pressa um prato de sopa e uma posta de um peixe qualquer. Já não os distingue. Nunca teve fome na vida mas, sem sorte, não gosta de peixe...
Volta a sair, a mãe grita-lhe a hora de chegada, que tem cumprido religiosamente. Sabe que está em falta. Chumbou de ano... Vai ter de ouvir tudo outra vez, conhecer novos colegas, aturar uma nova professora... A Dona Alcina até que nem era má. Só por uma vez lhe deu duas reguadas, mas pensando hoje no que se passou, merecidas. Despejou o pacote do leite para cima de um colega e pagou por isso.
Consciente que tem de cumprir sai novamente a correr. Hoje joga-se às escondidas e não quer ser o último a chegar. Toda a gente sabe que o último a chegar é quem fica à procura. O Miguel joga muito bem este jogo. É magro, pequenino e capaz de se enfiar em qualquer buraco.
Mas está a chegar a hora de ir para casa. É quase meia noite e a mãe já veio à janela dizer-lhe que não se afaste muito.
Lá volta para a casa à hora marcada, de trombas é certo, afinal todos os outros miúdos ainda ficaram na rua. Mas amanhã é um novo dia. E vendo bem o de hoje até correu bem.
Que boas são as férias!

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